Vanessa Reis, sócia do Medina Osório Advogados, opina sobre as políticas monetária e fiscal no Brasil, destacando os tratamentos distintos que recebem em artigo publicado no Estadão. Confira na íntegra:
Apesar de igualmente relevantes para a condução da economia nacional, as políticas monetária e fiscal têm recebido tratamentos institucionais distintos no Brasil. O Banco Central do Brasil, responsável pela política monetária, tornou-se, por força da Lei Complementar nº 179, de 2021, uma autarquia especial independente, dotada de autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira. Já as tentativas de institucionalização de um órgão independente voltado para a análise da política fiscal — como a proposta de criação de uma Instituição Fiscal Independente (IFI) prevista na PEC nº 83/2015 — ainda não prosperaram de forma plena. Essa proposta foi arquivada em 22 de dezembro de 2022, ao final da legislatura, nos termos do § 1º do art. 332 do Regimento Interno do Senado Federal.
Essa diferença de maturidade institucional não é trivial. Reflete uma escolha política e institucional sobre quais aspectos da política econômica devem ser blindados das pressões do ciclo político. O caso do Banco Central é paradigmático: ainda que sua autonomia formal tenha sido assegurada apenas em 2021, o Comitê de Política Monetária (Copom) já funcionava desde 1989, exercendo papel central na definição da taxa Selic — principal instrumento de controle da inflação — com decisões técnicas respaldadas por atas públicas e projeções macroeconômicas.
Criado por meio da Resolução nº 1.655/1989 do Conselho Monetário Nacional (CMN), o Copom teve sua atuação reforçada pelo Decreto nº 3.088/1999, que lhe conferiu a responsabilidade direta pela fixação da taxa Selic. Reunindo-se a cada 45 dias, o Copom analisa a conjuntura macroeconômica, avalia riscos à estabilidade de preços e emite comunicações técnicas que fundamentam suas decisões. A legitimidade e a previsibilidade da atuação do Copom foram se consolidando ao longo das décadas, de modo que hoje há um consenso robusto na sociedade brasileira sobre os benefícios da autonomia na condução da política monetária.
Em contraste, a política fiscal — que envolve decisões distributivas e alocativas sobre o orçamento público — ainda está fortemente vinculada às disputas do processo político. A proposta de institucionalização de uma IFI com papel permanente e autônomo dentro do Congresso Nacional foi um avanço nesse sentido, mas encontrou resistências estruturais. A PEC nº 83/2015, de iniciativa do então senador José Serra, previa a criação da IFI com mandato definido, composição técnica, vedação a interferências partidárias e capacidade de emitir relatórios públicos sobre o impacto fiscal de políticas e projetos legislativos. Seu objetivo era prover análises técnicas independentes e apartidárias, qualificando o debate público e elevando o nível de transparência na condução da política fiscal.
Durante a tramitação da PEC, foram incorporadas emendas que aprimoraram sua proposta: vedação ao exercício de outras atividades pelos diretores da IFI, inclusão de um Conselho de Assessoramento Técnico e previsão de punições para autoridades que não atendessem aos pedidos de informação da instituição. Mesmo assim, a iniciativa foi arquivada, sem jamais alcançar o consenso político necessário para sua aprovação.
Esse cenário é sintomático. A dificuldade em delegar a análise da política fiscal a um órgão independente está ligada, por um lado, à complexidade da execução orçamentária no Brasil — marcada por receitas vinculadas, emendas parlamentares impositivas e rigidez constitucional de despesas — e, por outro, à resistência de se abrir mão da discricionariedade fiscal em um ambiente político ainda pouco transparente.
Curiosamente, a atuação do Copom, mesmo centrada na política monetária, tem implicações diretas sobre a política fiscal. Em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de fevereiro de 2024, por exemplo, a IFI analisou os impactos da decisão do Copom de aumentar a taxa Selic de 12,25% para 13,25% a.a., prevendo novo aumento para 14,25% e projetando o IPCA em 5,2% para 2025. A IFI observou, ainda, o alerta do Banco Central sobre os riscos inflacionários e o impacto do repasse cambial (pass-through), evidenciando como a política monetária influencia o cenário fiscal — especialmente no que tange à trajetória da dívida pública, um dos objetos centrais de monitoramento das IFIs.
Apesar de sua atuação ainda tímida no Brasil, a IFI — hoje vinculada ao Senado Federal — ganhou maior projeção durante e após a pandemia da Covid-19, quando a urgência do gasto público e o aumento da dívida tornaram ainda mais necessárias análises técnicas sobre sustentabilidade fiscal. Porém, para que seu papel se fortaleça institucionalmente, é fundamental garantir-lhe independência funcional e financeira, algo que a PEC arquivada buscava assegurar.
Não se trata de defender que a IFI substitua o Congresso ou o Executivo na definição das escolhas fiscais, tampouco se pretende com este artigo advogar pela delegação plena da política fiscal, como se faz com a política monetária. A política fiscal, por sua própria natureza, envolve o debate sobre prioridades públicas, o que exige legitimidade democrática. O que se propõe é o fortalecimento de instrumentos de governança fiscal baseados em evidências e transparência, que sirvam de contrapeso técnico às decisões políticas.
Na Europa, esse movimento está mais avançado, com IFIs desempenhando papel relevante na avaliação de regras fiscais e na coordenação entre níveis de governo. No Brasil, o modelo pode e deve ser replicado nos entes federativos, respeitando as peculiaridades locais.
Em suma, a maturidade institucional para a delegação da política monetária no Brasil foi construída com base em uma trajetória técnica sólida e na percepção de que tal delegação protege a sociedade contra os custos da inflação. Para a política fiscal, é preciso percorrer caminho semelhante: fortalecer a IFI, garantir sua autonomia e assegurar seu financiamento, para que a população possa dialogar de forma qualificada com as escolhas orçamentárias que definem o presente e o futuro do país.