Conteúdos virais e economia globalizada desafiam alcance local dos Procons.

Casos de grande repercussão nas redes pressionam órgãos de defesa a agir, mesmo que acabem gerando mais curtidas do que consequências

A delegada Ana Paula Barroso passeava em um shopping de Fortaleza quando foi impedida de entrar em uma unidade da varejista Zara, que tem cerca de 50 lojas no Brasil. O episódio virou caso de Polícia Civil, que indiciou o gerente do local pelo crime de racismo, e agora depende de denúncia do Ministério Público do Ceará para que vá à Justiça.

Dias depois, o Procon de São Paulo — cuja sede fica na Praça da Sé, a 2.951 km de distância do Shopping Iguatemi Fortaleza — divulgou à imprensa que “notificou a Zara do Brasil Ltda. pedindo explicações sobre o caso de discriminação noticiado”.

Segundo o texto publicado no site da fundação, que é vinculada à Secretaria da Justiça e Cidadania e tem âmbito estadual, “a empresa deverá prestar esclarecimentos sobre as providências tomadas” em relação ao “caso específico apresentado nas reportagens”. Na esteira da indignação que se formou nas redes sociais em torno do episódio, o anúncio do Procon-SP recebeu ampla divulgação midiática.

Com câmeras quase onipresentes e crimes contra consumidores cada vez mais bem documentados, conteúdos do tipo têm apelo popular na internet e passaram a viralizar com frequência maior. E casos de grande repercussão demandam ação urgente. Mas, a falta de clareza sobre os limites de atuação de Procons como o de São Paulo — cujo diretor-executivo é Fernando Capez, ex-deputado estadual pelo PSDB (2007–2018) e ex-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo (2015–2017) — pode gerar insegurança jurídica e, nos bastidores, é alvo de queixas de advogados de empresas.

“Os Procons têm competências sancionadoras dentro dos marcos territoriais em que atuam. Isso delimita suas áreas de atuação no limite do princípio federativo”, afirma Fábio Medina Osório, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e advogado-geral da União durante o governo Michel Temer. “Fora daí, há abuso de poder e invasão de competências alheias”, conclui. Nesse sentido, afirma o advogado, o controle da Justiça é essencial: “O judiciário pode examinar essa matéria pelo prisma da ilegalidade, evidentemente.”

Questionado sobre o caso específico envolvendo a Zara e o Procon-SP, Medina Osório afirma que “se os Procons não respeitarem suas competências estritamente estaduais, haverá invasão de competências de outros Procons”. Para ele, o tema é de competência nacional. “O respeito ao princípio da competência da autoridade nacional significa prestígio ao ideal de segurança jurídica no Estado Democrático de Direito”, diz o advogado.

“Entendo que a erosão dessa garantia gera instabilidade para a economia e afasta investidores do Brasil. Além disso, o que é pior, afronta as normas de proteção aos consumidores e ao ordenamento de defesa dos direitos fundamentais ligados à livre iniciativa privada”, completa. 

Em nota enviada ao JOTA, o Procon-SP afirmou que, em relação ao caso no Shopping Iguatemi Fortaleza, “a legitimidade da atuação decorre da preocupação com o tratamento dispensado aos consumidores paulistas”. “O fato de a rede de lojas ter diversos estabelecimentos em São Paulo levou o Procon-SP a questionar a empresa a fim de entender se a prática denunciada também ocorre aqui [em São Paulo]”, diz o texto, que detalha como funções do órgão “elaborar e executar a política de proteção e defesa dos consumidores do estado de São Paulo”.

Além do Procon-SP, o Procon-SC também enviou uma notificação à Zara, mas especificamente a uma filial local, questionando se o caso ocorrido em Fortaleza seguia uma orientação nacional e se situações parecidas também haviam ocorrido no Villa Romana Shopping, em Florianópolis. Em nota à imprensa, a Zara negou “a existência de um suposto código para discriminar clientes” e disse que “rechaça qualquer forma de racismo, que deve ser tratado com a máxima seriedade em todos os âmbitos”.

Controle jurisdicional

Um exemplo do controle da Justiça sobre a atividade dos Procons ocorreu em 2015, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os órgãos de defesa têm competência para interpelar empresas por cláusulas contratuais que considerarem abusivas.

Com base nesse entendimento, em 2019 o Procon-SP anunciou à imprensa a aplicação de multas administrativas à Apple (R$ 7,7 milhões) e ao Google (R$ 9,9 milhões), por entender que a política de privacidade e os termos de uso do aplicativo FaceApp — disponível nas respectivas lojas virtuais e que havia viralizado naquela semana — deveriam ter versões em português. Como os documentos eram exibidos apenas em inglês, para o Procon-SP, as lojas virtuais desrespeitaram o Código de Defesa do Consumidor.

Apesar do destaque que a atuação do Procon-SP recebeu à época em sites de notícias, a Justiça foi acionada por ambas as empresas e ainda decidirá de forma final se as multas foram aplicadas dentro da legalidade. Por enquanto, os débitos foram inscritos na Dívida Ativa do Estado, mas estão suspensos enquanto são objetos de disputas judiciais em curso.

Em ação contra o Procon-SP na 1ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a Apple argumentou que disponibiliza o FaceApp em sua loja virtual, mas não é desenvolvedora do aplicativo, a quem, segundo o entendimento da empresa, o Procon-SP deveria direcionar os questionamentos. Em junho deste ano, o juiz Sergio Serrano Nunes Filho decidiu que a empresa não tem razão e manteve a multa. Ainda falta o julgamento de embargos de declaração, e cabe recurso à decisão.

O Google utilizou os mesmos argumentos que a Apple na Justiça, mas, ao contrário da concorrente, a empresa saiu vitoriosa na primeira instância. “A ação está em fase de recurso e o Procon-SP já apelou”, disse o órgão de defesa em nota ao JOTA. Somando a correção monetária e os juros de mora, o débito inscrito na Dívida Ativa do Estado atualmente é de R$ 12,7 milhões.

À época da notificação, ao anunciar que judicializaria a disputa, o Google afirmou em nota que “o Marco Civil da Internet e o próprio Código de Defesa do Consumidor dispõem que as lojas virtuais não devem ser responsabilizadas pelas práticas e políticas de aplicativos de terceiros”.

Entre 2017 e 2020, a receita do Procon-SP com multas, inclusive provenientes de pagamentos de débitos inscritos em diferentes dívidas ativas (municípios e estado), cresceu acima da inflação no período, de R$ 66 milhões para R$ 135 milhões.

Levando em conta apenas os valores recolhidos em função de infrações ao Código de Defesa do Consumidor, porém, o valor foi quase o mesmo — de R$ 28,6 milhões em 2017 para R$ 29,6 milhões em 2020 —, o que significa que, descontada a inflação, diminuiu a arrecadação com multas relativas a esse tipo de infração.

Procon paulista é pioneiro no país

O professor Marcus Wilcox Hemais, do IAG- Escola de Negócios PUC-Rio e doutor em Administração pelo Instituto Coppead/UFRJ, estuda o movimento consumerista no Brasil. Em sua tese de doutorado, em que pesquisou reclamações de consumidores de baixa renda, ele pontua que o Procon paulista foi criado em 1976 como a primeira instituição brasileira de defesa dos interesses dos consumidores.

“O Procon surge durante a ditadura, quando a pauta de defesa do consumidor talvez não fosse a mais prioritária”, disse Hemais em entrevista ao JOTA. “Mas, em São Paulo, o governo achou que era importante porque havia alguns movimentos sociais de consumidores que levantavam questões de proteção contra más práticas empresariais”, completou.

Segundo ele, em outros países era mais comum a atuação de entidades do terceiro setor. “No Brasil, que não era um país com qualquer tradição de defesa do consumidor, surge o interesse de defender o consumidor no contexto governamental”.

Em comparação ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e ao Proteste, o Procon se diferencia por atuar em nível mais individual, atendendo não apenas demandas coletivas. “O Idec e o Proteste têm um modelo de teste comparativo de produtos: escolhem, analisam e veem quais estão dentro dos padrões regulatórios aceitáveis”, explica o professor da PUC-Rio. “O Procon atua de forma que o consumidor pode ir lá para fazer uma reclamação e receber uma orientação ou, até, ter informações repassadas ao Ministério Público”.

Hemais explica que os diferentes Procons têm diferentes arranjos formais, o que acarreta também em mais ou menos independência em relação aos Poderes Executivos locais. “Nem todos são fundações, mas todos são organizações do Estado”, resume. “Talvez o Procon paulista, por ter sido o primeiro — e que espelhou os demais —, possa adotar uma atuação mais nacional”.

Em nota enviada ao JOTA, o Procon Fortaleza ecoa o raciocínio apresentado por Hemais, de que o Procon-SP age como liderança nacional. O órgão municipal afirma que não agiu no caso envolvendo a Zara por entender que “a defesa dos direitos do consumidor já estaria bem representada”, após a dianteira tomada pelo congênere paulista.

“Mesmo tendo como base o caso específico ocorrido em Fortaleza, a conduta da empresa poderia atingir diversos consumidores pelo país afora”, diz o texto. “O Procon Fortaleza entende que, sendo [a Zara] uma empresa com diversas lojas no país, inclusive em São Paulo, o órgão de defesa do consumidor busca resguardar os direitos dos consumidores daquele local.”

Artigo retirado do site Jota.Info

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