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Diálogo com o professor Jessé Torres Pereira Júnior em "Revisitando a Teoria da Separação dos Poderes"

Fábio Medina Osório

18/03/2021

14 minutos de leitura

Prezado professor Jessé, o conheci nos "Comentários À Lei Das Licitações e Contratações Da Administração Pública", na década de 90, como estudante e depois como procuradora municipal. Depois, o reencontrei em "Da Reforma Administrativa Constitucional", quando eu lecionava a matéria nos bancos da faculdade. No mestrado, eu te visitei novamente, na "Responsabilidade Fiscal", e, logo depois, reencontramos-nos em "Direito Administrativo - Coletânea de estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto", eu já como procuradora do Estado do Rio de Janeiro.

Não existe, no mundo do direito administrativo, alguém que não o conheça como um amigo dos estudos ou um farol a ser seguido. Portanto, como sempre, muito auspicioso, traz suas soluções simples e brilhantes neste nosso momento de diálogo, em  "Revisitando a Teoria da Separação dos Poderes", publicado em 2013, que é mais atual do que nunca.

Começo com minhas perguntas.

- Professor Jessé, como está a Teoria da Separação dos Poderes e a Sociedade hoje?

- "A complexa sociedade contemporânea vem percebendo que a teoria da tripartição de poderes: (a) hospeda uma vasta variedade de visões críticas sobre as funções do estado; (b) não hierarquiza valores, nem fixa indicadores, com o fim de estabelecer prioridades, em caso de conflito entre os objetivos e os poderes.

Os tribunais e as casas legislativas tendem a fazer uso do modelo teórico como um valor ou fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que dá suporte a concepções contrastantes do estado e suas estruturas, gerando contradições quando a teoria é posta em operação."1

Ora, professor, quer dizer, então, que nessa reconstrução por que passa o mundo, apesar de termos como cláusula pétrea, em nossa Constituição, a separação dos poderes, o antagonismo e o consenso, preconizados pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em sua obra Mutações Juspolíticas - em Memória de Eduardo G. de Enterria, Jurista em dois mundos,2 podem ser classificados  tanto como problema quanto como a solução para os dias atuais?

Explico.

O antagonismo que, nas palavras do professor Diogo, fomenta os confrontos de poder, embora eticamente pobre e podendo cobrar alto preço em vida e valores humanos, faz surgir a prevenção e a composição de conflitos. E, não por acaso, professor Diogo anuncia o surgimento, a partir do antagonismo e do consenso, ao dispor: "por outro lado, está na cooperação o tipo de relacionamento que possibilita uma coordenação de diversas expressões de poder com vistas ao atingimento de fins comuns, gerando e desenvolvendo virtudes sociais, como a tolerância e a confiança, que possibilitam a concertação de vontades e o surgimento do consenso"3.

-  O que acha, professor Jessé?

"O estado é uma construção colaborativa, cuja utilidade é a de permitir avanços mais efetivos e universalistas dos interesses individuais e coletivos, em regime de mútuo respeito e consideração;"4

Pois bem, professor Jessé, hoje vivemos empasses em relação a saúde, economia e desenvolvimento sustentável. Com a Covid-19, o governo Federal impôs restrições através da lei 13979, logo em fevereiro de 2020, disciplinando isolamento; quarentena; determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas; ou tratamentos médicos específicos; estudo ou investigação epidemiológica; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos; requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que registrados por autoridade sanitária estrangeira, e previstos em ato do Ministério da Saúde.

Portanto, em que pese o direito constitucionalmente previsto de ir e vir, preconizado no artigo 5, inciso XV da Constituição, as restrições impostas pela lei federal, e por todas as outras normas advindas da competência concorrente dos Estados e dos Municípios, reconhecida pelo STF na ADI 6341, fazem parte do que, de acordo com Habermas, na formulação kantiana do princípio do direito,  do peso da legitimação que carrega da "lei geral". Por isso o  imperativo categórico que a lei geral legitima a distribuição das liberdades de ação subjetivas, expressando um bem-sucedido teste de generalização da razão no exame das leis5.

- Assim, diante da realidade posta, com a pandemia, e diante da necessidade do Estado de prover bens, e das sucessivas intervenções  do Poder Judiciário. O que dizer, professor Jessé?

- "os cidadãos são sujeitos de direitos e obrigações políticas em face do estado porque este deve prover um conjunto de bens que aqueles não seriam capazes de obter individualmente;"

"a separação de poderes deve conduzir à organização de instituições estatais que atuem para assegurar que as decisões governamentais levem em conta tanto os interesses coletivos quanto os individuais; não se trata de propor que a "separação de poderes" exprima uma soberania bipolar, dualista, quase esquizofrênica, porém de considerar que o interesse público encerra noção que, embora monolítica, deve admitir a coexistência real de perspectivas divergentes acerca de qualquer ação estatal, por isto que as instituições devem estar predispostas a sopesar essas divergências e a admitir que nenhum dos poderes tem o monopólio do que é, ou não, de interesse público;"6

E, professor Jessé, se, nas palavras do professor Diogo7, "é certo que a coerção é imprescindível para a existência das sociedades humanas, mas também é certo não ser suficiente para que elas progridam livremente, de modo a permitir o pleno desenvolvimento das potencialidades individuais. Por outro lado, a desconfiança, que deriva do inato instinto de sobrevivência, leva à divergência, ao passo que a confiança, que conduz à convergência, surge no plano da consciência, exigindo certo nível de refinamento cultural, na medida em que as instituições criem fatores comportamentais que atuem reduzindo as inibições e, ao revés, promovam a ativação de uma etologia do desenvolvimento", qual o melhor modelo devem buscar os Poderes nesse momento?

''o novo modelo da "separação de poderes" busca extrair a unidade da divergência, visando obter resultados que a todos beneficiem, a partir de uma conjunção racional das finalidades de cada qual;''

- "o interesse público constitucionalizado nas políticas públicas exige administração responsiva às necessidades e aspirações coletivas e individuais, cujos efeitos decorrerão de uma cooperação institucional coordenada, apta a inibir ações unilaterais insuscetíveis de verificação e controle, verificação e controle que correspondem ao ideário republicano e democrático;''8

Professor Jessé, a própria palavra "poder" exerce uma atração, o que, nas palavras de Adolfo A. Berle, citado pelo professor Diogo, é "um dos mais velhos fenômenos das emoções humanas" que sempre exerceu fascínio, atração, assombro e medo, desde a antiguidade. Por isso, é considerado junto com o amor, por um de seus tratadistas clássicos.9 Assim, como evitar que colidam? Como evitar que um poder se sobreponha ao outro?

'o novo perfil da "separação de poderes" reclama um processo de coordenação participativa que os aproxime entre si, de forma transparente, organizada e permanente, afastadas rivalidades e disputas personalistas por lideranças, carismáticas ou não, e vedados expedientes sigilosos de cooptação (sempre canais de desvios de recursos públicos para atender a projetos pessoais);''

Sim, então  creio que devemos afastar as rivalidades e vontades pessoais, dentro do estado democrático de direito em que vivemos, que está em  uma permanente construção.

Afinal, como nos relembra Luís Roberto Barroso, acumulamos em nossos primeiros 500 anos as relações de dependência social do feudalismo e a vocação autoritária do absolutismo, bem como o modelo excludente da aristocracia: "A Constituição de 1988 é vítima, e não causa, dessas vicissitudes. E a muitas delas combate com bravura. A outras capitulou. Em seu texto antológico publicado em 1981, já referido, escreveu Raymundo Faoro:  "O que há no Brasil de liberal e democrático vem de suas constituintes e o que há no Brasil de estamental e elitista vem das outorgas, das emendas e dos atos de força. Nunca o Poder Constituinte conseguiu nas suas quatro tentativas vencer o aparelhamento de poder, firmemente ancorado ao patrimonialismo de Estado, mas essas investidas foram as únicas que arvoraram a insígnia da luta, liberando energias parcialmente frustradas. O malogro parcial não presta como argumento contra as constituintes, senão que, ao contrário, convida a revitalizá-las, uma vez que, franqueadas das escoltas estatais autoritárias, encontrarão o rumo da maioria e da sociedade real (...) O que a imperfeição da obra mostra é, apesar da adversidade, que o rio da democracia não tem outro leito por onde possa correr. O desastre histórico maior seria o salvacionismo das minorias, congeladas em privilégios, dispostas a, para mantê-los, afastar o povo das deliberações políticas."10

-  Assim, professor Jessé, existe alguma solução para isso?

''no estado democrático, administrador do interesse público constitucionalizado, o exercício do poder político é um processo permanente, interminável, de colaboração coordenada ente (sic) as instituições, cujo núcleo deve ser a governabilidade comprometida com resultados que a sociedade e os cidadãos reconheçam como benéficos para todos; vale dizer que maioria e minoria têm direitos iguais na audiência das instituições estatais e que estas, todas, têm iguais responsabilidades, no âmbito de suas respectivas competências constitucionais, na identificação e na consecução do que se deva considerar como de interesse público.''11

Prezado professor Jessé Torres,  agradeço imensamente nosso diálogo, que já dura muitos anos, desde os tempos de faculdade, depois nos estudos e sempre na solução de questões profissionais postas no Direito. Por mais uma vez, suas palavras, e soluções, se tornam atuais e necessárias para a condução da atual sociedade. Basta ler e revisitar seus ensinamentos. Obrigada!

__________

1- (PEREIRA JÚNIOR, 2013, p. 72)

2- (MOREIRA NETO, 2016, p. 160)

3- (Ibid., p. 2)

4- (PEREIRA JÚNIOR, op. cit., p. 72)

5- (HABERMAS, 1997, p. 157)

6- (PEREIRA JÚNIOR, op. cit., p. 74)

7- (PEREIRA JÚNIOR, op. cit., p. 160)

8- (PEREIRA JÚNIOR, op. cit., p. 75)

9- (MOREIRA NETO, 1992, p. 33)

10- (BARROSO, 1998, p. 23-24)

11- (PEREIRA JÚNIOR, op. cit., p. 75)

__________

BARROSO, Luís Roberto - Dez anos da Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo. 214 (1998). 1-25.

HABERMAS, Jürgen. - Direito e democracia: entre  facticidade e validade. v. I.  Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997, pp. 157.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. - Novas mutações juspolíticas. Belo Horizonte : Fórum, 2016. p. 396. ISBN 978-85-450-0114-0.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. - Teoria do Poder. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1992.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. - Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. Rio de Janeiro : Ed. Renovar, 1993. 489 p.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. - Da Reforma Administrativa Constitucional. Rio de Janeiro : Ed. Renovar, 1999. 492 p.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. - Responsabilidade Fiscal - Estudos e Orientações (coletânea de vários autores). São Paulo : Ed. NDJ, 2001. pp. 163-203.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. - Direito Administrativo - Coletânea de estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro : Ed. Lúmen Júris, 2006. pp. 441-467.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. - Revisitando a Teoria da Separação dos Poderes. Revista do TCU. 127 (2013) 72-75.

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